sexta-feira, 29 de dezembro de 2017

Cartão Vermelho

Dói agora e vai doer para sempre.
As pessoas costumam dizer que tudo passa. É um pensamento reconfortante, mas nem sempre verdadeiro. Nem tudo passa. Algumas coisas ficam. Algumas facas se alojam fundo nas suas costelas, e se tornam como Excalibur. A diferença é que não existe Escolhido para tirá-la dali. Fica pra sempre, e dói pra sempre.
Seus dedos não ajudam. Lembram de cada toque e tudo sobre eles. A maciez, a dureza. Os toques carregados de ternura e os toques carregados de maldade. Os dedos lembram. E tremem a mão inteira, o braço inteiro, o corpo inteiro com as lembranças.
A última vez é uma lembrança pálida, bruxuleante, quase inexistente. Você lembra de segurá-lo. Lembra-se de palavras, mas não consegue entendê-las. É como ouvir algo sendo dito na superfície, enquanto você está embaixo d’água. Mas houveram palavras, disso você tem certeza. Lembra-se de colocá-lo no chão, inconsciente de que seria a última vez. De fato, você só pensou nisso agora. Foi a última vez. E ela se parecia muito com apenas mais uma.
Finais raramente são anunciados. A ilusão de que cada adeus é marcado com um “Adeus!” é perigosa. Na maior parte do tempo, você vira as costas e nem pensa na próxima vez que verá tal pessoa, ou tal lugar. Jamais imaginaria que seria a última, até que percebe que foi. E eu sei que finais prenunciam um início, mas às vezes você não quer recomeços. Às vezes você quer que as coisas fiquem exatamente como estão, embora esse pensamento não passe pela sua cabeça até as coisas mudarem. E então você sentirá falta.
Não sei bem explicar o sentimento de falta. Algo como andar pela sua própria casa e de repente enfiar o pé num buraco no meio da sala-de-estar. Estava ali antes? Não, você sabe que não. E seu pé machuca, e você sente falta do chão. Ou tomar um gole de café da sua cafeteria favorita, e perceber que veio totalmente amargo. Seu paladar não gosta, e você sente falta do açúcar. Algo devia estar ali, e sempre esteve ali. E então não está mais. E é isso.
Acomodar a vida ao redor das faltas… aí está uma arte dolorida. Construir palácios em volta de uma cratera, e fingir não notá-la. Falhar. Chegar perto demais da beirada. Quase perder o equilíbrio. Continuar no topo, olhando para baixo, obviamente n o t a n d o a cratera. Se sentir envergonhado, melancólico, desesperado por não conseguir ignorar. Aprender que não se ignora a falta. Ao contrário. Passa-se pela cratera todo dia, nota-se a cratera, admite-se que ela é real. E continua vivendo mesmo assim, com um buraco gigante no meio do palácio.
Não fica mais fácil. Sinto muito. Sinto muito de verdade. Você se acostuma com a faca nas costelas. É agonizante. Perturbador. Mas é seu agora. Indubitavelmente, apenas, seu. Seu para carregar, seu para notar, seu para sofrer. Seu.
Dói agora, e vai doer para sempre.
Algumas coisas, infeliz e inevitavelmente, ficam.

(dec. 23, 2017)

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